Marielle Franco (BR)

Marielle Franco

O retrato onírico de Marielle Franco

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No meu sonho eu escuto, ecoando: bem que poderíamos ganhar salários menores, ser realocados a cargos inferiores, trabalhar três vezes mais, ser julgados por nossas roupas, sofrer violências sexuais, físicas e psicológicas, ser mortos cotidianamente por nossas parceiras , nós não nos calaríamos: nossas vidas importam! 

Mas são vozes mais doces que murmuram, lábios vermelhos marcados nos muros em tijolos, borboletas em bando nos estômagos, de cores infinitas e mais numerosas que todas as paletas dos artistas. As vozes se apressam, ofegantes, elas gritam as mesmas palavras: nossas vidas importam!

No sonho, eu estou no Rio de Janeiro, os sonhos às vezes me transportam para cidades jamais visitadas pelos meus olhos, sentidos, cidades jamais escritas, amadas e também não esquecidas. Eu dormi só uma noite, no século passado, no aeroporto do Rio ao lado de um monstro de duas cabeças (uma de homem e uma de mulher), que poderia ter me dado medo, me assustado, que tentou me decapitar mas que mordeu o próprio rabo a ponto de sangrar um líquido verde. Era como um Falo - não como os cogumelos - em forma de revólver, com uma pseudo-virilidade, uma pseudo-humanidade.

No sonho ouço, claramente, instrumentos. Estalar de dedos crescentes, olhares enojados que costumam ser responsáveis por darem vida à luta. Homens que se tornaram pornográficos, às vezes estúpidos, que sempre se apropriam do pior do poder, se lisonjeiam com a disputa de poderes – desde que eles ganhem – e matam quando perdem. Máquinas perdedoras que matam desesperadamente, matam por existir em um mundo onde a própria existência é questionada.

No sonho, um homem diz que a terra é plana – mesmo com Parmenides nos ensinando desde 420 A.C que ela é redonda – . Mas o homem é assim: ele se conta a história de Adão e Eva apesar da existência comprovada dos dinossauros, eles pensam que os negros são bestas, escravos, gordos, barulhentos, que os indígenas estão em evolução para se tornarem, aos poucos, mais humanos, ele grita que é contra mulatos, feministas, putas, trans e viados, ele repete que o lugar da mulher é na cozinha, mesmo que doente, que a família é feita de um homem e de uma mulher, que uma mulher deve apanhar, que a dominação é sua herança, que a competição deve ser viril... depois chora nos braços de sua mãe. 

No sonho, há uma outra voz, talvez a minha, que às vezes se diz cansada e que, ao mesmo tempo, me pede para acordar, para lutar pelas causas, pelo respeito, pela humanidade. Eu respondo sempre que não tenho palavras. Depois, essa voz, entre duas canções francesas insignificantes que não tem nem alma e nem combate, entre dois versos, escuto Marielle Franco surgir, instigar, me fazer acreditar novamente. Acreditar. Devemos acreditar ou agir. Impor ou dialogar. Considerar que existe uma base universal de direitos, ou observar e aceitar as diferenças mesmo nas atrocidades? Minha resposta é inequívoca, mas íntima. Convicção íntima. Crença íntima?

No sonho, Marielle Franco não canta, ela não é uma nova cantora MPB, é uma militante feminista dos direitos humanos, de todos os direitos. Mesmo os mais pequenos. Mesmo minúsculos, pouco importa. Ela me observa, finalmente sorri, me encara, comunica sem falar, então ela ri. Ela se aproxima, eu sinto suas energias e sua alma. No sonho ela me fala de muitas coisas, de amor, de igualdade, de leis que ainda são desrespeitadas, aceitas, reconhecidas, normalizadas, ela me fala de meu sotaque italiano quando eu falo o português basileiro, isso nos faz rir novamente, é preciso rir, é preciso tirar sarro dos homens incapazes de guardar suas armas, incapazes afastar seus instintos primitivos,  imitam-se na monstruosidade, deliciam-se com o sangue, com o absurdo. O erro seria se revoltar todo o tempo, por tudo, a cada instante. É preciso rir e agir. Desista ao morrer desde que morra dando risada. 

No sonho, Marielle Franco me fala das favelas, do poder das mulheres e diz: as rosas da resistência florescem no asfalto . Receberemos rosas, mas é de punhos cerrados que falaremos do nosso lugar de existência contra os mandamentos e os abusos que afetam nossas vidas . Eu a digo que pensava que tudo estava construído mas que será preciso desconstruir e reconstruir, uma fatalidade? As forças progresistas duram apenas uma noite, um pouco como a Moonflower, que só floresce uma vez por ano por uma duração de apenas doze horas.  Os militantes de esquerda não tem o monopólio do coração, como ama repetir a direita, mas parecem um pouco com o Strophocactus wittii , um cacto epífito, que depende de outras plantas para crescer. As raízes que se agarram aos troncos, os caules que sobem e se enrolam nas árvores. E a esta flor de doze horas por ano, a flor da lua. Marielle Franco transforma-se em Moonflower , que eu fico tentado a colher mas me abstenho, não esqueço que a beleza é efêmera e não é pertencente a ninguém.

No pesadelo, o Rio de Janeiro me irrita, me enche, os militares no poder, fuzis sempre fuzis, arma dos idiotas, boas leis estão desaparecendo, leis que protegem estão desaparecendo, leis que acham que o amor é essencial mesmo entre duas mulheres desaparecendo em um labirinto de desesperos. Unir o exército à insegurança é como dar uma camisinha a um homem estéril. Estou nesse pesadelo, nessa pressão onírica, tentando acordar pra não perder Marielle Franco de vista. Eu penso em todos esses horrores novamente como sexismo, racismo, etarismo, capacitismo e muitos outros. Tudo para proteger o homem normal do inferno. No pesadelo, o toque de recolher só permitia que pessoas normais saíssem, produzissem, comprassem, usufruíssem.

No pesadelo, Marielle Franco, socióloga, vereadora eleita no Rio, negra, bissexual, ativista e mulher de esquerda, conhecida por seu ativismo em prol das mulheres, da causa LGBT, dos negros e favelados e por críticas à policia militar estava no banco de trás de seu carro com seu assistente. Então, boom boom, armas, motoqueiros, pessoas baleadas, baleadas, mortas. A esperança está morta de novo e de novo. A lei fálica prevalece como sempre, como um ataque de ansiedade, um espasmo intestinal, uma ignomínia.

Não há mais sonhos, apenas pesadelos sobrevivem. Porém, ela voltou esta noite, para me dizer que florescer, mesmo que por doze horas, é mais intenso e importante para a Humanidade . No meu sonho, os retratos de Che Guevara são substituídos pelos de Marielle Franco, a heroína emblemática desses tempos em que os nerds e boomers tomam o poder. O poder de impor uma visão arcaica e violenta do mundo. Eu só acredito parcialmente em Marielle Franco. Doze horas por ano nunca serão suficientes. Como erradicar essas ervas daninhas, esses cogumelos fálicos?


Tradução : Marcelo Favaretto


Publicações e histórias


Bio

Marielle Francisco da Silva, conhecida como Marielle Franco, nascida em 27 de julho de 1979 no Rio de Janeiro e assassinada em 14 de março de 2018 na mesma cidade, foi uma socióloga, política e ativista feminista de direitos humanos e LGBT brasileira.

Detalhes de uso
Mapuetos é um projeto literário criado pelo escritor belga Patrick Lowie. Esse retrato é um retrato onírico, ou seja, é apenas um retrato inspirado por um sonho e pura imaginação. Consequentemente, a história que está sendo contada não é real. Erros de sintaxe ou ortografia... não hesite em entrar em contato com mapuetos@mapuetos.com

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